Neste segundo ano pandêmico, tive a alegre experiência de conduzir, remotamente, quatro ciclos de encontros da “Curadoria de Si”, workshop que venho realizando desde 2016 dos mais diversos modos. Trata-se de um convite a um mergulho nos processos de criação, individuais e em grupo. Deste modo, proponho sempre uma trajetória que vez ou outra é modulada por um tema ou recorte: passamos pelos ateliê interiores, pelas genealogias artísticas, pelas cartografias afetivas até chegar nas possibilidades de comunicação dos processos com o mundo.

A “Curadoria de Si” nasceu em um momento em que eu ministrava aulas como professora substituta na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Diante da disciplina “Empreendedorismo e Produção Cultural” recorri às experiências que já havia tido no campo (como produtora cultural), mas, sobretudo à rica vivência que tive como arte-educadora na já extinta Casa Daros, no Rio de Janeiro. Lá, tive a sorte de conhecer Eugênio Valdez Figueroa, nosso curador de arte-educação. Nascido em Cuba nos anos 60, Eugênio fazia parte de uma geração que havia sido fortemente influenciada pelo artista e pedagogo uruguaio Luís Camnitzer que tem, dentre outras frases célebres, a famosa “Arte é Educação”.

A experiência com Eugênio foi singular, pois, naquele momento, ele era grande entusiasta da criação de um “Acervo Pedagógico de Artista”. Na Casa Daros nós, a equipe de Arte-Educação, recebíamos muitos artistas brasileiros e latino-americanos (a Casa Daros era financiada por uma coleção suíça de arte latino-americana e expunha majoritariamente as obras que fazem parte dela). A ideia, portanto, era que nós deveríamos registrar todos os workhops e oficinas, a fim de compor, a longo prazo, um acervo pedagógico de artista. Este acervo, poderia vir a ser consultado por professores, artistas e interessados em processos artísticos.

O que era interessante e revelador para mim, naquele contexto, era que nem sempre os artistas tinham para si, de modo evidente, os caminhos de sua criação. Deste modo, criar caminhos de aproximação destes processos era uma tarefa outra, pedagógica, por assim dizer. 

Passado alguns anos, em plena pandemia, resolvi investir na “Curadoria de Si” como um ativador de encontros tendo como dispositivo a investigação do material de criação de cada participante. A primeira edição contou com o apoio da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, com a qual foi contemplado o Centro Cultural Dançarilhos, do qual fiz parte. Neste contexto, pude conduzir a primeira experiência remota da Curadoria de Si. Foi incrível poder contar com pessoas de várias partes do Brasil e do mundo!

Tendo o grupo demonstrado interesse pela continuidade, seguimos com o módulo II. Nem todas pessoas seguiram, mas pudemos contar com outras chegando. E isso foi se mostrando um novo jeito, para mim, de constituir grupalidade. Afinal, em 2020, eu optei por não fazer workshops, com exceção de uma edição muito linda da Receita da Vida, no mês de junho. Precisei concentrar os esforços nos atendimentos individuais e em grupo, que vinham exigindo de mim bastante presença e exercício de reinvenção para se constituir neste outro cenário.

Do módulo II fomos então para o módulo III só que agora com um tema: Corpo Coletivo. Eu obviamente influenciada por Lygia Clark, mas também pela nossa experiência de pandêmica, nosso Corpo Social, como bem fala meu querido professor terapeuta Daniel Benchimol. Era desejoso estar em grupo, nesse momento, diante de tanto luto e tanto adoecimento advindo de nosso isolamento. 

Chegamos então no módulo IV, com a ideia dos Ateliês Móveis. O que eu preciso para criar? Esta foi a pergunta orientadora, e neste módulo pudemos experienciar materiais juntas. Criar composições em tempo real, pequenas improvisações que podiam fazer soprar nos corpos das participantes um frescor da arte e da vida. Sem dúvida, muito emocionante, para mim, conduzir tal processo. 

Eis que agora tenho vivido um processo de ateliê móvel: depois de um ano e meio atendendo, dando aulas e workshops estritamente no modo virtual, passei a atender presencialmente na Casa da Pau Brasil, um espaço dedicado à residência artística aqui em São Paulo. A pergunta “o que eu preciso para criar?” também orientou a pergunta “o que eu preciso para atender?”. Eu me vi então toda semana montando uma sala, que é compartilhada com outros, e lembrando dos meus tempos de teatro e sala de ensaio. Arte e clínica se encontram também aqui.

Agora, finalizando 2021, vamos para o módulo IV desta experiência. Como recorte, vamos apostar nas “Paisagens Afetivas”. Ou seja, durante quatro semanas, as pessoas participantes serão convidadas a fazer contato com as paisagens que habitam seus corpos através de trechos da literatura, frames de filmes e assim, compor um laboratório de investigação pessoal e coletiva.

“Paisagem Afetiva” é uma noção que uso inspirada no filósofo Henri Bergson. Bergson, um filósofo da psicomotricidade por excelência, fala belamente sobre a memória, e sobre como ela não é estática, ela se move a todo tempo em nosso corpo. Através das nossas marcas corporais, noção cara à prática psicomotora, vamos construindo nossa relação com o mundo. Nossas marcas são nossa história. Porém, somos também parte de um mundo que produz imagens a todo instante e numa velocidade cada vez mais rápida. Somos também seres que nasceram junto com a fotografia e com o cinema, podendo então essas imagens também me habitarem. Paisagens de lugares nos quais eu nunca estive podem me habitar afetivamente, pois o corpo (e aqui, corpo, é subjetividade) também é um produtor de imagens.

Portanto, adentrar nossas paisagens afetivas é adentrar nossa história e nosso imaginário. Nossos sonhos, nossas ontologias, nossas imagens mais profundas. E ver brotar também novas imagens, ou ainda, como diria Gilles Deleuze, pensamentos sem imagem.

Adentrar as paisagens do corpo exige fôlego. Mas, podemos fazer isso estando com outras pessoas, podendo também de quando em vez se emocionar com as paisagens que habitam outros corpos e que de repente, me habitam também. Voltamos ao corpo coletivo? Quiçá. Que na diferença e na unicidade possamos nos aventurar nessa misteriosa caminhada que é existir.

 

 

A Curadoria de Si módulo V vai acontecer nos dias 20 e 27 de novembro e 04 e 11 de dezembro, das 17h às 19h. Se você tiver interesse em participar, é só mandar um email para maira@fiosdoser.com.br. Nós conversamos por lá. Até breve!