por Maíra Gerstner

Cadeiras elétricas da baiana
Sentença que o turista cheire
E os sem amor, os sem teto
Os sem paixão sem alqueire
No peito dos sem peito uma seta
E a cigana analfabeta
Lendo a mão de Paulo Freire
 (trecho de Beradêro, de Chico César)

Entre os dias 15 e 16 de novembro de 2018 tive a oportunidade de participar de uma formação no Centre National de la Danse, na cidade de Pantin. A formação era voltada para a utilização e desenvolvimento de ferramentas de mediação artística em dança. Se no Brasil a prática da mediação é mais conhecida nos museus, voltada para as exposições, na França ela também acontece nos teatros e outros espaços culturais. Havia portanto no grupo, diversos profissionais que desenvolviam suas práticas como funcionários de teatros públicos, realizando um trabalho de aproximação do público com a dança contemporânea.

Meu intuito já era desde o início fazer uma aproximação das práticas de mediação buscando conectá-las ao trabalho clínico, que é o que já faço nos workshops e atendimentos da Fios do Ser. A ideia de fazer liens, ou seja, fazer as ligações, tecer os fios, tem em francês um sentido bastante subjetivo e psíquico. Nossa instrutora começou se apresentando dizendo que não era bailarina nem historiadora da dança, mas sim mediadora. Cabia ela criar os liens entre o espectador e a obra, a obra e a história, a história e os seus procedimentos, lançar provocações, etc.

Não seria o terapeuta também um criador de liens? Entre o vivido e o presente, entre a escuta e o corpo, entre a história e a memória, etc. Talvez o que diferencie uma prática terapêutica de outra seja justamente a sua maneira de criar liens. Curiosamente, também venho participando de uma formação aqui na França em Psicogenealogia (termo cunhado nos anos 90 pela médica francesa Anne Ancelin Schützenberger) que estuda os fenômenos transgeracionais que se dão socialmente. Irmã da Constelação Familiar criada pelo alemão Bert Hellinger, a psicogenealogia lança mão de outras ferramentas e de outras abordagens teóricas para a construção desse fazer. Venho realizando essa formação com a Lienspsy (L’Institut Européen des Nouvelles Solutions en Psychologie), que também traz a palavra lien no centro da sua marca.

Durante os dois dias de formação no CND nos foi apresentado possibilidades de dialogar com o público a partir de temas da dança contemporânea (corpo, cena, espaço, dramaturgia, etc) a partir de um material já pré-elaborado pela equipe, que também nos convidou a criar nossa própria maneira  de dialogar com ele, a partir de situações imaginadas, problemas conceituais e aberturas relativas à percepção.

Dentre tantas possibilidades de conexão entre arte, educação e clínica (é importante lembrar que eu fui por muitos anos mediadora de museus no Rio de Janeiro, o que fez com que eu me aproximasse das artes visuais e da obra de Lygia Clark), a abertura da percepção é um dos aspectos que mais me tocam. Uma obra de arte, uma visita mediada, um processo terapêutico, podem todos contribuir para um deslocamento no nosso modo de ver as coisas.

E para minha surpresa, nossa mediadora finalizou a formação nos indicando a leitura de “Pedagogia da Autonomia”, de Paulo Freire. Meus olhos quase lacrimejaram. Jamais imaginaria que ouviria tal indicação aqui em solo francês, tão conhecido pela sua produção intelectual e por uma certa falta de reconhecimento das outras produções pelo mundo. E justo ele, Paulo Freire, que tanto nos ensinou a ensinar amorosamente, afetivamente, ouvindo nossas diferenças. A música de Chico César, que sempre me emocionou, consegue captar tão rapidamente o espírito deste homem. A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire. O que a cigana lê que não está nas letras? Talvez seja uma boa pergunta para cada um de nós. O que seria ler o mundo para além das letras (sem necessariamente tocar na dimensão mística, que prevê o futuro)? O que seria ler o mundo a partir do seu potencial simbólico. Está aí mais um encontro entre arte, educação e clínica.