Venho estudando e me relacionando com a obra de Lygia Clark há quase dez anos e posso dizer que uma das coisas que mais me fascinam a continuar esta pesquisa é a generosidade com a qual Clark nos presenteou um legado extremamente aberto e convidativo a um constante aprendizado a partir da criação. Com isso, quero dizer que, para entender seu trabalho é preciso vivê-lo. E quando vivemos algo, nos apropriamos singularmente e aquilo passa a ser nosso também.

Neste texto vou apresentar em linhas gerais a trajetória de Clark a partir de um viés absolutamente pessoal, de alguém que vem trilhando essa jornada desafiadora que é aproximar a arte da clínica. Sem dúvida, devo muito a Clark por ter aberto esta estrada e também à todas as pessoas que me formaram e me instigaram a seguir por esse caminho.

Em 2012 eu era uma jovem atriz de teatro interessada nas aproximações entre a cena e as artes visuais. Vinha de uma história com a educação em museu, passando por importantes instituições no Rio de Janeiro. Mas, naquele ano, eu realizava o projeto Peças em Galeria, duas peças teatrais que aconteciam em dentro de exposições de arte. O projeto era dirigido por Bel Garcia, atriz e diretora carioca falecida em 2015.

Uma das peças era Inglaterra, um texto do autor inglês Tim Crouch. Eu estava em cena com Pedro Brício e nós interpretávamos educadores de museu que levavam o público para uma visita mediada. O impressionante deste texto era que o autor sugeria que a peça poderia ser feita dentro de qualquer exposição, pois a aleatoriedade fazia parte da construção da linguagem. Críticas ao mercado da arte e sua suposta relação com o tráfico de órgãos humanos era um dos eixos do texto.

Eis que um dia, dois amigos muito queridos foram assistir ao trabalho: Daniela Mattos e Ricardo Basbaum. Ao final da peça, me apresentaram para Santiago Garcia Navarro, crítico de arte argentino, que seria então meu professor no curso que eu faria no MAM, meses depois, a partir das propostas de cunho coletivo criadas por Lygia Clark, nos anos 70, em Paris.

Entre 1970 e 1976, Lygia Clark partiu para a França onde lecionou na Sorbonne, no curso de artes, uma disciplina de Corpo e Espaço. Iniciou-se aí um período no qual Clark realizou as suas proposições coletivas com suas turmas, a fim de acordar o que ela chamou de corpo coletivo. Obras como A rede elástica, Baba Antropofágica e a A viagem são desse período.

Retornando ao Rio após o período na França, Lygia Clark iniciou uma nova fase em seu trabalho nomeada por ela e por Suely Rolnik de Estruturação do Self. Passou a realizar uma experiência fronteiriça, a partir do corpo do participante. Em um consultório, ela criou os seus objetos relacionais, que são colocados sobre o corpo do participante durante a sessão. São eles: almofadas, almofadas leves, almofadas leves-pesadas, almofadas pesadas, colchão com bolinhas de isopor, manta, objetos feitos com meia calça, objeto de semente, pedra, pedrinha, respire comigo, saco plástico cheio d’agua, saco plástico, saco plástico cheio de areia.

Lygia Clark era uma construtora de objetos. Eles têm em comum a simplicidade dos seus materiais, o diálogo entre opostos (pesado/leve, cheio/vazio) e a vasta gama de possibilidades sensoriais. A pedra aqui tem um valor muito importante de ancorar o participante no agora. Segundo Gina Ferreira, Lygia Clark era sobretudo interessada nas imagens produzidas pelo participante ao longo da sessão que eram para ela como que a consolidação da obra.

Incompreendida na época pelo meio artístico e pelo meio psicanalítico, Clark passa a sentir-se cada vez mais isolada até a sua morte em 1988. De lá para cá, algumas investidas se deram na tentativa de recuperar a importância de seu legado nos mais diversos campos do conhecimento, sobretudo ao ocupar e inventar um novo território para si, na fronteira entre arte e clínica. O trabalho de Suely Ronik, neste sentido, teve uma importância cabal na legitimação conceitual do percurso de Clark, afirmando o seu trabalho como um híbrido:

Insistir em considerar como método terapêutico a última proposta de Lygia, pode nos levar a perder o essencial: a força disruptiva de seu híbrido feito de arte e clínica, que faz vibrar em cada um destes campos a tensão do trágico, tornando ética e estética indissociáveis. (Suely Rolnik)

É interessante observar que Suely Rolnik vai chamar a atenção para a ideia de que Lygia Clark não inventou um método ou um sistema: há ali algo muito vital que é suportar essa tensão indefinida se se é uma coisa ou outra e, no entanto, ser as duas.

A meu ver, o legado de Clark tem a ver com justamente isso, em nos provocar a assumir as tensões quando nos autorizamos a fazer as pontes. Vivemos em um mundo que rapidamente nos exige respostas rápidas e tratamentos eficazes que já nos antecipem o resultado. Aqui, o trabalho caminha no sentido oposto.

Depois do curso com Santiago, participei de um grupo de estudos que se encontrava semanalmente para realizar as práticas de Clark. Bianca Bernardo, Maria Mattos, Lucas Icó e Bernardo Zabalaga foram meus companheiros nesta aventura. Nos reuníamos no apartamento do Capacete (Programa de Residência Artística no Rio de Janeiro) na Glória e seguíamos com a investigação.

Ao passo que seguia pesquisando o trabalho de Clark, iniciei minha formação em Psicomotricidade no Instituto Anthropos, também no Rio de Janeiro. Realizar uma formação tão profunda como a que me foi oferecida em psicoterapia corporal, foi fundamental para fazer com que eu tivesse condições de criar pontes as pontes que me interessavam.

Na psicomotricidade se acredita naquilo que é vivido pelo corpo, em todos os momentos da vida. Todo corpo tem sua história e suas marcas. Assim, as vivências psicomotoras apostam, tanto com adultos como com crianças, no deslocamento sensível através da experiência. Isso se dá através da relação, do movimento e do pensamento.

Passei então a articular os ensinamentos de Clark com o saberes psicomotores e assim nasceu o workshop “O Corpo como Território do Sensível”, com o qual trabalhei inicialmente com grupos de teatro no Rio de Janeiro (Teatro Inominável e Pangéia) até abrir para o público geral na sua primeira edição da Sede das Cias.Deste modo, posso dizer que a aproximação que comecei a fazer entre arte e clínica passou, sem dúvida, também pelo teatro, que é minha primeira formação.

Também tive a oportunidade de estudar com Gina Ferreira e Lula Wanderley, fundamentais na história brasileira quando falamos não só de Clark, mas também de toda a luta antimanicomial e o trabalho realizado nos centros de assistência psíquica no Rio de Janeiro.

Por isso, quando me perguntam se eu sigo um método, ou ainda, como funciona o meu trabalho, fico sempre me perguntando o que subjaz esta questão. Atuo como psicoterapeuta corporal ancorada nos saberes da arte, pois tenho para mim que há, na obra de muitos artistas (e Clark talvez seja uma das mais excepcionais neste sentido) saberes clínicos em potencial. E para mim, o encontro terapêutico é antes de tudo, um encontro. Quiçá um ensaio para a vida?

Isso me faz lembrar Antonin Artaud e todo o seu grito contra as formas institucionalizadas de arte. Mas, na clínica, está a solução. É claro que não. Ainda mais porque sobre a clínica orbitam tantos saberes normativos, que nos ditam sobre a vida. A potência está justamente na fricção entre os campos, e para isso não há manual. O que precisamos é ter o interesse na auto investigação e nos seus processos de invenção, tendo a ética como orientação.

Aprender a escutar o corpo exige tempo. Afinal ele tem outro tempo. Um tempo de criação. De epifania. E de aprender a sustentar o que não tem nome. Mas que quer nascer. Como nos diz Gilberto Safra “cada ser humano é a singularização da vida de seus ancestrais e é o pressentimento daqueles que virão”.

Por isso, criei algum tempo depois o workshop “Curadoria de si”, no qual fazemos, entre outras coisas, o estudo das nossas genealogias artísticas. Muitas vezes, para compreender o que somos e o que está querendo brotar em nós, precisamos olhar para aqueles que são nossos ancestrais na artes. À quais legados estamos conectados.

Eu, sem dúvida, sou conectada ao legado de Clark, como de tantos outros. Mas, sempre gosto de dizer que no exercício, ela entraria como minha mãe. Se você também se sente conectadx a esse legado, lhe convido a fazer também esse exercício, bastante lúdico, de criar a sua “família artística”. Quem sabe ela lhe orientará para novos rumos ou lhe fortalecerá na construção daquilo que está querendo se materializar através de você, em breve.